A editora "pirata" que escancarou a FALÊNCIA da propriedade intelectual no Brasil

Quando a única forma de ser ouvido é cometer um "crime" sem vitima, talvez o problema não esteja no ato, mas na inercia mercadológica imposta pelas regras do sistema estatal de propriedade intelectual.

Imagine um fã. Um colecionador apaixonado por cultura pop japonesa desde os anos 80, frustrado com décadas de silêncio das grandes editoras brasileiras. Esse fã decide fazer o impensável: publica, por conta própria, um mangá clássico inédito no país, Urusei Yatsura, da lendária Rumiko Takahashi. Sem licença. Sem permissão. Mas com todo o carinho do mundo. O nome da empreitada é quase irônico: Ao Leitor, com Carinho. Mas o estado, os oligopólios editoriais e os guardiões da "propriedade intelectual" não têm senso de humor. Para eles, o que Erik Yoshitaki fez é crime. Crime de verdade, previsto na Lei 9.610/98. E se depender da práxis jurídica e da patrulha corporativa, não importa a intenção, a qualidade ou o contexto, o que vale é o selo. E quem republica sem selo é pirata.

Mas e se o pirata for o único a navegar?

A história da editora “Ao Leitor, com Carinho” viralizou porque toca num nervo exposto: a falência do modelo tradicional de licenciamento cultural. Erik tentou fazer tudo "certo": buscou contato com a Shogakukan, a editora japonesa dona dos direitos da obra. Não obteve resposta. Depois, encontrou um suposto agente japonês, que deu um preço absurdo, não comprovado, e sumiu. E o que Erik fez diante desse bloqueio? Publicou mesmo assim. Por amor à obra. Por indignação diante do silêncio. Por entender que ninguém mais faria. O problema? Ele fez isso como editora. Com documentação legal, com branding, com site e venda direta. Colocou o nome de Rumiko Takahashi ao lado do selo da editora como se ela fosse uma autora “da casa”. Ou seja: quis jogar o jogo das grandes, mas sem estar no clube. E aí, meu amigo, o estado não perdoa. Se fosse só um "printseller" na Shopee, talvez passasse batido. Mas ele ousou parecer legítimo. E é aí que está o pecado cometido contra a deidade estatal.

Recentemente, a Polícia Civil do Mato Grosso realizou a Operação Slimeread – Traço Final, mirando um site de fansubs e scans que distribuía gratuitamente mangás, manhuas e webtoons. O crime? Compartilhar cultura sem pagar pedágio. Foram quatro ordens judiciais: bloqueio do domínio, remoção do site dos servidores, e mandados de busca e apreensão em Cuiabá e Jaciara. Segundo a investigação, o site somava cerca de 5 mil acessos mensais — o suficiente, aparentemente, para justificar a mobilização do aparato estatal sob o pretexto de “proteger a economia criativa”.

A justificativa oficial, segundo o delegado da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), é que o site lucrava “indiretamente”, por meio de anúncios e doações voluntárias. O estado, claro, não se importa com a qualidade do conteúdo, nem com o fato de que boa parte dessas obras jamais foi licenciada oficialmente no Brasil. O que incomoda é o modelo: descentralizado, voluntário, à margem do monopólio formal.

Vamos direto ao ponto: nós libertários entendemos que não existe perda real quando alguém copia ou reproduz uma obra, seja por qualquer meio, pois devido às custas de um material original, a pessoa que não comprou o original por conta do pirata, já não ia comprar mesmo, portanto não há prejuízo. Não há vítima. A Shogakukan não ia lançar Urusei Yatsura no Brasil. Nenhuma grande editora brasileira demonstrou interesse por décadas. E o autor da iniciativa não roubou vendas, apenas preencheu um vácuo.

Mas o sistema jurídico não foi feito para lidar com a realidade, foi feito para proteger privilégios. A lógica da propriedade intelectual é baseada na escassez artificial. Ela presume que ideias, histórias, artes e códigos são bens escassos como carne ou gasolina. Que podem ser “tomados” e “protegidos”. Que alguém copiar algo que ama, sem impedir o outro de vender, é uma forma de agressão.

E é claro, os amigos do papai estado agradecem, isso é, desde a revolução industrial onde oligarcas industriais copiavam as invenções de gênios menos abastados e as patenteavam, proibindo os reais inventores de usufruir de suas criações, até os dias de hoje como o caso da Universal que tentou tomar da Nintendo o Donkey Kong alegando ser um plágio do King Kong. Por sorte, ao analisarmos a história percebemos que o sistema nefasto da propriedade intelectual está ruindo a cada julgamento, desde o Henry Ford quebrando a patente do George Selden, até o caso da Intel que tentou patentear um firmware para seus processadores nos anos 80 e o juiz decretou que softwares são operações matemáticas e portanto não podem ser patenteadas.

Voltando ao caso do Erik, na prática, o que ele fez se aproxima muito mais de um serviço sob demanda, um “print-as-a-service”, do que de uma editora tradicional. E isso é o que torna tudo ainda mais interessante. A tecnologia de impressão sob demanda, aliada à digitalização da cultura e à informalidade dos canais de venda direta (como Shopee, Mercado Livre, ou grupos de Telegram), abriu brechas reais no monopólio da mídia.

Hoje, qualquer pessoa com acesso a arquivos digitais, uma impressora e alguma noção gráfica pode produzir livros, revistas, encadernados e vendê-los para nichos sedentos e ignorados pelas grandes casas. Fãs que querem reler em papel o que nunca foi publicado e localizado, e sim somente no digital. Obscuridades dos anos 80. Edições alternativas. Materiais educacionais. Histórias “esquecidas”.

Isso é descentralização. Isso é mercado de verdade. Isso é capitalismo sem cartório. Mas infelizmente, ou talvez felizmente o Erik quis mais. Quis reconhecimento. Quis parecer uma editora “séria”. Criou logotipo, redes sociais, site, padronização editorial. Não bastava entregar o conteúdo, queria entregá-lo com dignidade estética. O problema é que, ao fazer isso, ele cruzou uma linha simbólica: deixou de ser um anônimo nos becos da internet e virou um alvo oficial. Transformou seu projeto de fã em uma ameaça simbólica ao status quo. Se tivesse agido como fazem os fansubs e scanlators, com anonimato, descentralizadamente, e sem tocar em CNPJ, talvez estivesse celebrando o segundo volume hoje, sem manchete no UOL nem dor de cabeça com advogados.

Mas há algo de trágico e heroico na tentativa de fazer direito aquilo que o sistema só aceita se vier dos seus. E foi isso que Erik aprendeu da pior forma: o estado não persegue quem infringe a lei, persegue quem infringe a lógica do poder.

Vamos falar a real: o sistema de licenciamento de mangás no Brasil é um oligopólio disfarçado de mercado. Algumas poucas editoras, Panini, JBC, NewPOP, concentram a maior parte das obras, negociam diretamente com o Japão e impõem filtros de interesse comercial, logística e agenda editorial. É mais fácil ver o centésimo relançamento de Naruto do que uma publicação experimental, underground ou esquecida dos anos 80.

As editoras japonesas, por sua vez, têm critérios obscuros e pouca disposição para lidar com pequenos players fora do eixo EUA-Europa. Não respondem e-mails, não oferecem canais claros, não negociam com indivíduos. E quando negociam, exigem tiragens irreais, royalties altos e controle editorial rígido. Ou seja: bloqueiam o acesso, criminalizam as alternativas e depois reclamam da pirataria.

É nesse contexto que a “pirataria” deixa de ser um problema e passa a ser a solução. Estamos falando de fãs tentando preencher um buraco que ninguém quer tapar. De pessoas comuns dizendo: “se ninguém vai fazer, eu faço”, seja escaneando, revisando, tratando as páginas e até editando-as para se adequar ao público. Muitas vezes um trabalho não só não remunerado, mas feito genuinamente com paixão e carinho, e também de consumidores que, cansados da espera eterna, topam pagar por algo que o mercado se recusa a oferecer.

E o mais interessante: essas comunidades muitas vezes produzem com mais carinho, mais fidelidade e mais capricho do que as editoras oficiais. Traduções feitas por quem ama a obra. Capas restauradas e adaptadas por fãs talentosos. Revisões colaborativas. Um ecossistema onde a justiça não é codificada, mas emergente, baseada na reputação, na troca, na paixão.

Enquanto isso, no submundo visível da internet brasileira, o que não falta são lojas “alternativas” vendendo encadernados fan-made de Berserk, Yu Yu Hakusho, Os Cavaleiros do Zodíaco e até obras ocidentais. Alguns são vendidos abertamente na Shopee. Outros por canais no Instagram. Alguns funcionam sob demanda. Outros mantêm estoque pequeno. Nenhum tem licença. Todos têm público.

E o estado não consegue fazer nada, pois é como a hidra, corta uma cabeça, nascem duas. A sede por esse tipo de material é tão grande que o estado não consegue reprimir.

Por quê? Porque é descentralizado. Porque não há sede. Porque não há editora registrada. Porque cada um é um microempreendimento nômade, adaptativo, antifrágil. Porque a repressão a um resulta na multiplicação de dez. Porque a cultura, quando não é sufocada, se espalha.

O caso do Erik e da sua editora “Ao Leitor, com Carinho” é só a ponta do iceberg. O que ele revela é que o modelo de propriedade intelectual, especialmente no Brasil, está em ruínas. Ele não protege autores. Ele não estimula a criação. Ele apenas protege os intermediários. E bloqueia o acesso. E pune a inovação. E impede que fãs realizem sonhos em nome de “direitos” que só existem no papel, mas que na verdade são um serviço oferecido ao estado, afinal, tudo o que é necessário ser pago não é direito e sim um serviço.

Mas a realidade está mudando. A impressão sob demanda, a digitalização, a descentralização dos canais de venda e a erosão da autoridade institucional estão criando um novo mercado, invisível, amorfo, espontâneo. E ele cresce na mesma medida em que o mercado oficial recusa demandas reais.

O estado pode tentar reprimir. Pode processar, censurar, ameaçar. Mas não pode calar milhões de leitores que descobriram que não precisam mais esperar. Que não precisam mais pedir. Que podem fazer.

A real transgressão de Erik não foi imprimir um mangá num bom papel com uma impressão de alta qualidade. Não foi vender o volume por R$69,70. Não foi sequer colocar o nome da Rumiko como “autora da casa”. A verdadeira heresia foi escancarar o que todo mundo já sabe, mas finge não ver: no mundo real, fora da fantasia coletiva forçada pelo estado por meio do monopólio da violência, não existe propriedade intelectual.

Erik revelou que o rei está nu. Que a “propriedade” de uma ideia, de um traço, de um roteiro, de uma história, é só uma ficção sustentada por contratos, advogados e coerção estatal. Que essa escassez é artificial. Que o monopólio é convenção. E que todo o arcabouço jurídico de “proteção” serve, na verdade, para impedir o acesso, bloquear a criatividade espontânea e manter os velhos intermediários no poder.

Referências:

https://anmtv.com.br/policia-fecha-site-de-mangas-piratas-em-mato-grosso/