Como diria o pessoal do Instagram: o mundo não dá volta, ele capota! Como uma tecnologia que foi criada para destruir completamente a pirataria está fomentando o seu retorno?
Talvez você, espectador, não seja tão velho quanto o escritor para se lembrar do Napster, o compartilhador de músicas dos anos 2000. Possivelmente, esteja mais familiarizado com o eMule ou o LimeWire, que eram as versões do Napster para todos os tipos de arquivos. Entretanto, se você não estava vivo na época em que a internet era só mato - e muito lenta -, com certeza já baixou algum arquivo usando torrent. Pois é, talvez não saiba, mas, se já fez isso com algum arquivo protegido por direitos autorais, você cometeu um crime. Afinal, pirataria é crime, conforme definido pelos órgãos do governo desde 2003, aqui no Brasil.
Mas, por que as pessoas pirateiam jogos, filmes, séries e músicas? Bem, para responder a essa pergunta, precisamos voltar aos anos 2000, época na qual a guerra contra a pirataria estava em seu auge. Há duas décadas, as pessoas normalmente baixavam e disponibilizavam as músicas de diversos cantores e bandas das quais eram fãs. Muitos acreditam que isso ocorria porque ninguém queria pagar pelo produto ou serviço. Contudo, a verdade não é bem essa. A pirataria estava vencendo porque ela simplesmente oferecia um serviço superior ao que estava disponível para as pessoas no mercado tradicional. Por que alguém iria sair de casa para procurar uma loja que vendia um CD da sua banda favorita, mas que tinha uma única música que gostava, e comprar a mídia física pagando 20 reais, sendo que poderia pesquisar a mesma música no Limewire, baixar — mesmo com a internet discada da época — sem pagar nada por isso? A indústria musical tentou por diversas vezes acabar com a pirataria, mas como bem sabemos, foi tudo em vão. Em 2003, a Apple lançou a sua loja de música, conhecida por iTunes, onde qualquer pessoa poderia fazer o download das suas músicas preferidas por 99 centavos de dólar. Na época, muitos acreditavam que isso seria o fim da pirataria, afinal, deixou as músicas dos artistas mais acessível, e remodelou completamente como as pessoas conheciam novos artistas. Porém, para aqueles que pirateavam suas canções para colocar nos MP3, nada mudou.
O que realmente transformou radicalmente a indústria musical foi a criação do Spotify, em 2008. Do dia para a noite, as pessoas pararam de pagar por cada faixa musical, adquirindo o serviço de streaming por um valor mensal, para ouvirem quantas músicas quisessem. O preço era justo e a conveniência também. Afinal, se quisesse ouvir uma música da sua banda favorita, bastava pesquisar pela faixa em questão ou pelo álbum e, voilà, em alguns segundos já estava com o fone no último volume. Ficou claro que, se alguém quisesse destruir a pirataria, precisaria oferecer um serviço melhor do que aquele que ela oferecia — algo óbvio para qualquer indivíduo que entenda o mínimo sobre economia e os incentivos dos consumidores, certo? Pois é.
Enquanto a indústria musical se adequava a mudança disruptiva, a velocidade da internet aumentava exponencialmente, o que permitiu que a pirataria de vídeos se tornasse muito mais acessível. Foi então que apareceu a Netflix, uma solução parecida com o Spotify, que aliava conveniência com um preço bastante acessível. Por que alguém iria se preocupar em ver um filme em baixa qualidade, em um site com milhares de propagandas e com a legenda adiantada se poderia pagar poucas dezenas de reais mensalmente para assistir quantas vezes quisesse a sua série preferida? Tudo isso em alta qualidade, sem nenhuma propaganda e com legendas perfeitas. É lógico que mesmo com o advento dessas duas empresas, a pirataria não acabou por completo, mas baixar um conteúdo que estava disponível nas plataformas se transformou em um trabalho meio que inútil. Meados de 2015 foi o ápice para os streamings, com a Netflix se tornando um portal onde encontrávamos nossas séries e filmes favoritos, tanto que foi nessa mesma época que o jargão, “se não tem na Netflix, não conheço”, apareceu.
Contudo, chegou a concorrência: Disney+, Max, Prime Video, Paramount+ e até a Globoplay apareceram. De repente, seu entretenimento na TV não estava mais em um único lugar. Ao contrário do Deezer e do Spotify — onde, em tese, é possível encontrar todas as músicas em ambas as plataformas —, o rumo tomado pelos streamings de vídeo foi completamente diferente. Um conteúdo normalmente não está disponível em mais de uma plataforma.
Além disso, ficou explícito, nos últimos anos, que sua cartilha de opções — que só cresce no caso das músicas — pode encolher na calada da noite. A Warner Bros. Discovery retirou Westworld e outros programas da HBO sem avisar ninguém. O Disney+ também removeu diversos programas e filmes originais sem qualquer tipo de aviso. A Netflix, por sua vez, é conhecida por mudar constantemente sua biblioteca, tornando impossível confiar que, quando você começar a assistir a uma série de que gosta, ela continuará disponível quando estiver pronto para maratoná-la. Nem mesmo o pay-per-view é seguro: a Amazon Prime Video excluiu ou restringiu o acesso a filmes que seus clientes haviam comprado.
Então, vamos resumir o problema: você paga uma mensalidade por um serviço, encontra uma série, se envolve emocionalmente com ela, e do nada, ela desaparece, sem dizer tchau, nem obrigado. Tudo isso, sendo que posso baixar ou assistir em um site pirata como era o padrão antes da Netflix? É, realmente, essa ideia vai destruir a pirataria! Ah, mas não se engane, a evolução das empresas de streaming, que em tese seria resolver este problema, foi para um caminho diametralmente oposto. Pensando em piorar a situação, várias delas se tornaram produtoras de conteúdo. A Netflix já disse que endereçará 18 bilhões de dólares em 2025 para criação de conteúdo, que, logicamente, estará disponível somente na sua plataforma. Se a quantidade de mensalidades continuar a mesma, a empresa precisará aumentar a sua mensalidade para 330 reais. Diante disso, pergunto: você estaria disposto a desembolsar esse valor por mês? Provavelmente, não. Segundo dados do Comscore, o brasileiro paga de três a quatro plataformas de streamings mensalmente, alocando aproximadamente cem reais mensais para esse serviço. Nem se o brasileiro deixasse de assinar todas as outras empresas, a nova mensalidade da Netflix seria mais de três vezes o seu orçamento.
Podemos dizer, então, que isso é uma insanidade — ainda mais sabendo que mais da metade das gerações Z e Y já cancelaram seus serviços de streaming nos últimos seis meses. Conforme as mensalidades vão aumentando absurdamente de preço, a cartilha de clientes vai diminuindo.
Obviamente, um cliente poderia parar de pagar a Netflix ao terminar de maratonar Round Six, para então assinar a Apple TV e começar a assistir a Ted Lasso, objetivando um controle maior do seu orçamento. Isso é um incômodo e uma irritação que não justificam a economia.
A realidade é que muita gente prefere pagar por uma plataforma realmente boa ou por nenhuma! Em todo caso, não existe vitória para o consumidor. Ninguém está tentando resolver o problema central: a fragmentação do conteúdo entre diversas empresas.
As organizações têm o poder de decidir o quê, por quanto tempo e até quando o conteúdo ficará disponível para seus clientes. Isso sem contar os cancelamentos de séries com uma enorme quantidade de espectadores, feitas apenas para conseguirem deduções fiscais, ou o fato de não termos mais aquelas séries de comédia hilárias simplesmente porque as empresas não estão interessadas em produzi-las — mesmo que seus clientes desejem seu retorno.
Mas convenhamos: se ignorar as demandas dos clientes fosse o pior dos problemas, ainda estaríamos bem. Atualmente, as plataformas estão sugando o que podem dos consumidores.
Em 2017, a Netflix tuitou: “Amar é compartilhar”, mostrando que a empresa não apenas gostava, mas incentivava que seus clientes compartilhassem suas contas com amigos e familiares. Em uma reviravolta tremenda, em 2023, decidiu que quem compartilhasse com pessoas fora de casa poderia ter a conta bloqueada. E, como giromba não tem braço, bastou ela criar essa limitação para que as demais plataformas também entrassem na jogada.
Não só isso: depois de um tempo, disseram aos clientes que a conta que eles tinham agora teria anúncios. Isso mesmo. Ao contrário dos streamings de música, onde você paga para não ter propaganda, nos streamings de vídeo você paga — e continua vendo anúncios, com tão pouca variedade que os usuários acabam enjoando de assistir aos mesmos reclames do plim-plim.
Essa ganância das empresas está fazendo com que as pessoas voltem às origens, buscando uma solução mais barata e que resolva seus problemas — ou seja, a pirataria.
As empresas estão percebendo isso, haja vista os comentários dos executivos da Netflix, que disseram haver uma facilidade muito grande de as pessoas assistirem ao conteúdo exclusivo da plataforma sem pagar pelo serviço.
No início, a empresa tinha inúmeras vantagens em relação à pirataria. Afinal, para baixar qualquer conteúdo, era necessário ter um conhecimento técnico básico para utilizar o torrent. Hoje em dia, não há mais essa necessidade. Boa parte dos sites piratas oferece streaming sob demanda, com uma experiência muito próxima à das plataformas, sem cobrar nada por sua utilização.
Eis o motivo de as empresas estarem preocupadas com a pirataria: elas estão perdendo bilhões de dólares — mas não o suficiente para estarem tão preocupadas. O ano de 2024 foi o melhor da história para a Netflix, o que não se pode dizer das demais plataformas.
Primeiro, afirmamos com propriedade que a pirataria nunca irá acabar — e que essa prática nunca foi antiética, pois não existe, na ótica libertária, tal coisa como propriedade intelectual, o que implicaria reconhecer o direito de propriedade sobre algo que não é escasso. Trata-se de uma forma descentralizada e distribuída, gratuita e de qualidade mediana, para as pessoas assistirem a seus filmes e séries preferidos. É um serviço, como qualquer outro.
As pessoas não pirateiam porque gostam de ser fora da lei, ou porque são avarentas e não querem pagar um centavo pelo serviço. Elas pirateiam porque são forçadas a isso pela inconveniência, pelos preços exorbitantes e pela escassez crescente de conteúdo que as empresas de streaming estão criando — os mesmos problemas que antes tentavam resolver, mas que agora retornaram piores e com mais força.
Para fazer com que a pirataria se torne irrisória, basta que tenhamos um local onde possamos encontrar todos os filmes e séries, com uma qualidade boa, excelente experiência do usuário, e a um preço acessível a todos. Isso resolveria o maior problema das pessoas, o qual é a comodidade, cobrando honestamente pelo serviço. Em outras palavras, forneceria um produto, a um preço atrativo, tratando os usuários como clientes, endereçando os esforços nas dores que eles possuem.
Alguém pode dizer: “Ah, mas as pessoas que pirateiam não querem pagar nada por algo que já possuem de graça.” Errado!
Quantas pessoas que piratearam jogos por não terem dinheiro para comprá-los no passado, posteriormente os adquiriram na Steam? Quantas pessoas pensam duas vezes antes de piratear um game porque ele está com desconto, custando menos de cinquenta reais na mesma plataforma? Quantas pessoas que curtem jogos de tiro pagam um valor mensal ou anual para ter acesso aos servidores do jogo?
Acreditar que a pirataria acontece porque as pessoas simplesmente querem benefícios sem pagar nada por isso é não compreender como o mercado funciona. Se o valor e a comodidade do produto ou serviço excederem o preço, as pessoas o adquirirão, mesmo que ele esteja disponível gratuitamente na internet.
É exatamente por isso que a propriedade intelectual é uma ideia absurda. Se a pessoa estiver interessada no seu produto, ela irá comprá-lo se enxergar valor nele. Mesmo com quase todos os livros disponíveis na internet, as pessoas continuam comprando exemplares físicos por acreditarem que têm valor — seja porque preferem o formato físico, seja por desejarem uma determinada tradução ou edição de uma editora específica.
No fim, a pirataria é apenas uma forma de serviço disponível para as pessoas. Proibi-la é não compreender as dores dos clientes, é reprimir o livre mercado e demonstrar ignorância — desejando que as pessoas paguem por um serviço de baixa qualidade. É como sermos obrigados a pagar para sustentar aquilo que chamamos de Estado — ou melhor, o monopólio da violência —, que apenas nos expropria e não agrega nada de valor à nossa vida.
https://www.metropoles.com/negocios/brasileiro-assina-em-media-8-servicos-de-streaming-diz-pesquisa
https://www.bloomberglinea.com.br/2023/04/20/adeus-netflix-inflacao-pode-levar-millennials-e-geracao-z-a-cancelar-streaming/
https://www.omelete.com.br/series-tv/brasileiros-cancelam-streaming
https://set.org.br/set-news/a-geracao-z-esta-abandonando-programas-de-tv-e-filmes-em-servicos-de-streaming/