A condenação de Bolsonaro pelo STF expõe abuso de poder e um tribunal que virou ator político, abandonando de vez o direito e a justiça, em prol de "quebrar e arrebentar" seus opositores, custe o que custar.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu: Jair Bolsonaro foi condenado por quatro votos a um e recebeu 27 anos e 3 meses de prisão, em regime inicial fechado, pela trama que visava impedir a posse de 2023. É uma sentença histórica — a primeira condenação penal, em plenário, de um ex-presidente, por crimes relacionados a uma suposta "tentativa de ruptura do estado democrático". A dosimetria ficou a cargo do relator, Alexandre de Moraes, que viu na conduta do réu elementos de liderança, planejamento e uso instrumental de cargos e instituições para fins políticos. A defesa terá caminho aberto para recursos e embargos; até lá, quando ocorrer o chamado trânsito em julgado da ação, após todos os recursos cabíveis, que serão julgados também pelo próprio STF, a execução da pena não ocorrerá.
Não bastasse o exagero da pena, há um detalhe jurídico essencial que parece ter sido ignorado: o Supremo Tribunal Federal não é o foro natural para esse tipo de julgamento. A Constituição estabelece regras claras sobre competências, mas o STF, movido por uma ânsia de protagonismo político, tem acumulado poderes que extrapolam sua função original. O que deveria ser julgado pela Justiça comum é absorvido pelo tribunal máximo, transformando-o em instância única de acusação, instrução e condenação. Esse monopólio não é apenas ilegal, mas profundamente autoritário, pois impede a revisão por outras cortes.
Essa decisão é muito mais do que um veredito jurídico. Ela projeta uma visão do poder e da justiça no Brasil atual. Por isso é importante ir além da manchete. Devemos analisar o que mudou na relação entre justiça e política, e quais riscos essa mudança representa para a liberdade coletiva.
Para entender a gravidade do caso, é útil separar três planos. Primeiro, as provas e as acusações. Segundo, o papel que o próprio STF passou a ocupar. Terceiro, as consequências práticas e simbólicas de condenar um ex-presidente por crimes políticos. Cada um desses planos exige atenção — e cada um revela problemas distintos.
As acusações — organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado — foram avaliadas a partir de gravações, reuniões, atos públicos e outros elementos. Aqueles que votaram pela condenação viram nesses elementos um projeto coordenado, persistente e instrumental. Já o voto divergente entendeu que as provas não amarravam, de forma suficiente, a responsabilidade criminal plena do ex-presidente. Essa divergência mostra que o ponto central não é apenas técnico; é também político e interpretativo.
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal transformou-se em ator político ativo — não apenas julgador, mas também indutor de investigações, abridor de procedimentos de ofício - ou seja, por iniciativa própria, sem provocação do Ministério Público - e articulador de diversas medidas absurdas, que atingem diretamente a rotina política do país, além de anular decisões do Legislativo. Processos como o chamado “inquérito das fake news”, a atuação em medidas cautelares e a comunicação direta com polícias e forças de segurança, colocaram o tribunal no centro de decisões, antes próprias de outros atores. Essa centralidade desmonta a ideia clássica de separação de poderes: quando juízes, que lembremos, não são eleitos, além de terem mandato vitalício, assumem funções de agenda política, a fronteira entre direito e política se apaga.
A terceira camada é a prática da execução: o acórdão de condenação, mesmo que ainda sujeito a recursos, tem efeito político imediato. Ele redesenha a arena eleitoral, a legitimidade de grupos e movimentos, e a percepção internacional sobre a governabilidade do Brasil. Além disso, fixa um precedente — que ministros do STF podem, em turma, responsabilizar penalmente um ex-presidente, por atos políticos, que eles interpretem como atentatório ao Estado de Direito. Esse precedente servirá, daqui em diante, de referência para litigiosidade política e para a estratégia de seus adversários. A esquerda só se esquece que, um dia, serão ministros de direita que terão o mesmo poder à disposição.
Outro ponto que precisa ser denunciado é a tentativa de criar uma falsa equivalência histórica entre Lula e Bolsonaro. A imprensa e parte da elite política buscam sustentar a ideia de que “ambos foram condenados”, como se a simetria justificasse o discurso de imparcialidade. Mas a realidade é outra: contra Bolsonaro não existem provas concretas que sustentem tamanha condenação, apenas interpretações enviesadas de falas e reuniões. Já Lula, em todos os processos, jamais teve um voto absolutório sequer, até que a engenharia jurídica anulasse provas e deslocasse julgamentos. Essa comparação artificial é apenas mais uma narrativa para legitimar a perseguição atual.
Mas talvez o pior de tudo isso seja a judicialização da política — o uso do aparato judicial para resolver conflitos essencialmente políticos — que traz consequências devastadoras. Primeiro, corrói espaços de deliberação: decisões que normalmente seriam objeto do debate público — políticas, estratégias, disputas pelo voto — são deslocadas para salas de tribunal, o que faz com que se perca a arena da persuasão e da legitimidade popular. Além disso, cria incentivos para que atores políticos busquem nos magistrados resultados que não obtiveram nas urnas, e também instala um ciclo de retaliação: se um lado usa a jurisdição para neutralizar adversários, o outro tende a reagir com novas ações, ampliando o conflito institucional. Em sistemas onde o Judiciário concentra competência investigatória e sancionadora, com forte exposição midiática, é inevitável que decisões penais passem a ser interpretadas como instrumentos de política partidária — e não como justiça ou aplicação do direito.
A história brasileira oferece advertências sobre a facilidade com que poderes constituídos expandem seu raio de ação em nome de causas nobres: “estabilidade”, “ordem” ou “defesa da democracia”. O espectro vai desde o golpe militar de 1964 — justificada por parte da elite como remédio para a suposta desordem — até atos legais de exceção (medidas econômicas, estados de emergência) que, ao longo do tempo, aproximaram o estado do cidadão por meio da coerção. O episódio atual convoca essa memória.
Aos poucos, vai se formando no imaginário popular a ideia de que Alexandre de Moraes é uma espécie de “xerife” do regime, aquele que define sozinho os limites da política, quem pode falar e quem deve ser silenciado. Mas nenhum poder é eterno, e nenhum abuso fica sem resposta histórica. O mesmo sistema que hoje o protege pode amanhã virar-se contra ele. Alexandre de Moraes, assim como outros ministros que hoje usam a toga para exercer poder político, um dia será responsabilizado por seus crimes contra a legalidade e contra a liberdade. A história é implacável com aqueles que abusam de sua posição.
Outro ponto crítico é a normalização da responsabilização penal de ex-governantes por posições e estratégias políticas. Se isso vira rotina, governar passa a significar mais evitar decisões que possam ser interpretadas como criminosas do que propor políticas públicas. A consequência é a autocensura: políticos falarão menos, governarão menos, e a inovação política será prejudicada. Se o estado atual da política fosse bom, isso até seria algo positivo, mas como é necessário que o estado brasileiro passe por uma “Mileização”, travar a ação política pode significar impedir políticas de redução de estado.
Do ponto de vista libertário, o que se observa é a expansão do estado em sua face punitiva. Sempre defendemos limites ao poder estatal. A aplicação penal geral e ampla, sobretudo quando aplicada em disputas políticas, cria um precedente perigoso. Isso porque leis penais e procedimentos judiciais podem ser revertidos e reutilizados conforme as maiorias mudam. Hoje se pune um líder; amanhã pode-se punir outro com base em argumentos semelhantes. O resultado é a consolidação de um estado-tribunal que decide quem pode ou não participar da vida política.
Além disso, decisões de alta carga política minam garantias básicas. Princípios como presunção de inocência, ônus da prova cabal e ampla defesa devem ser preservados com rigor. Quando a “defesa da democracia” vira justificativa para suspender direitos, caímos no paradoxo: supostamente "proteger a democracia", recorrendo para isso à suspensão de liberdades individuais.
A condenação de Jair Bolsonaro, assim, marca um capítulo preocupante. Não apenas porque pune um ex-presidente, mas porque sinaliza uma mudança estrutural: o Judiciário assume papel político e expande seu raio de ação. Essa mudança reduz a esfera de liberdades individuais e transforma diferenças políticas em casos de polícia. E quando processos se acumulam contra líderes políticos, a sanção penal deixa de ser exceção e passa a fazer parte do jogo político regular.
Como ainda vivemos em um mundo estatista, e o Ancapistão não parece que virá tão cedo, é preciso pensar em alternativas que limitem o poder do estado, dificultando a instrumentação política do direito, tais como: limitar a abertura de inquéritos de ofício por cortes constitucionais; reforçar o protagonismo do Ministério Público e das polícias na investigação criminal; exigir fundamentação detalhada e colegiada para medidas que atinjam direitos políticos; acelerar e garantir recursos céleres; e fortalecer mecanismos de transparência sobre decisões judiciais de grande impacto político.
Se aceitarmos que juízes não eleitos definam, de forma extensiva, os limites da participação política, estaremos trocando debate por coerção. Tribunais devem existir para garantir legalidade e punir crimes, não para serem usados como armas em disputas políticas.
O que se vê, portanto, é um tribunal que não apenas ultrapassa suas competências, mas que atua de maneira seletiva. A balança da justiça deveria pesar igualmente para todos, mas o STF demonstra ter lado e agenda. Para uns, flexibilizam-se regras, anulam-se processos e criam-se teses de ocasião. Para outros, como Bolsonaro e seus aliados, a severidade é máxima, as provas são dispensadas e o princípio da presunção de inocência é jogado no lixo. Essa seletividade é a própria negação da justiça, e a cada dia mina ainda mais a credibilidade da Corte perante o povo.
A pergunta que fica não é somente se a condenação é justa — mas se a sociedade brasileira deseja um modelo em que juízes não eleitos, com instrumentos amplos de investigação e punição, tenham a palavra final ao definir os contornos do campo político. Vamos aceitar um modelo em que o Judiciário, transformado em ator político, decide permanentemente quem pode participar do jogo? É hora de repensar limites, reforçar garantias e devolver ao povo a palavra final sobre seu destino político.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2025-09/stf-condena-bolsonaro-27-anos-e-tres-meses-de-prisao
https://correiodecarajas.com.br/primeira-turma-do-stf-condena-jair-bolsonaro-a-27-anos-e-3-meses-de-prisao
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/condenado-a-27-anos-bolsonaro-ficara-inelegivel-por-8-anos-apos-pena/