Como uma Jornalista Perdeu o Emprego por Questionar a Censura na Steam

Jogos removidos, criadores arruinados e uma jornalista demitida por investigar. A nova censura não vem do governo — vem dos cartões, dos bancos e de quem decide o que é “aceitável” online.

A Steam sempre teve fama de ser a plataforma mais permissiva da indústria — uma forma educada de dizer que ela estava repleta de jogos adultos. Mas essa realidade mudou drasticamente quando a Valve atualizou suas diretrizes para desenvolvedores, criando uma nova categoria de conteúdo proibido: qualquer coisa que viole "as regras e padrões estabelecidos pelos processadores de pagamento da Steam e redes de cartão e bancos relacionados".
O resultado foi imediato e devastador. Mais de 400 títulos desapareceram da plataforma em questão de dias, com foco especial em jogos que continham palavras-chave como "incesto". Séries inteiras, como Interactive Sex e Sex Adventures, foram completamente varridas do mapa, deixando desenvolvedores sem fonte de renda da noite para o dia. Para quem dependia dessas vendas para sobreviver, não foi apenas censura — foi sentença de morte econômica.
A Valve se viu encurralada em uma posição impossível: aceitar as demandas dos processadores de pagamento ou perder o acesso às formas mais básicas de transação digital. Visa, Mastercard e PayPal — que controlam virtualmente todo o fluxo financeiro da internet — simplesmente comunicaram suas "regras e padrões" e deixaram claro que não haveria negociação. Para uma plataforma que processa milhões de transações diárias, era capitular ou morrer. O mais perverso? A política é tão vaga que nem os próprios desenvolvedores sabem o que pode ser removido amanhã.
Quando Ana Valens decidiu investigar quem estava realmente por trás dessa operação de limpeza digital, ela não imaginava que seria sua própria carreira que acabaria na guilhotina.
Ana Valens não era uma jornalista qualquer. Especializada em cultura gamer e questões LGBTQ+, ela havia construído uma reputação sólida na Vice como alguém disposta a investigar os bastidores da indústria de jogos sem medo de incomodar os poderosos. Quando decidiu escavar a verdade por trás da censura na Steam, estava fazendo exatamente o tipo de jornalismo que a havia tornado respeitada — e isso seria exatamente seu problema.
Em 19 de julho, Valens publicou na Vice uma matéria demolidora intitulada "Grupo Por Trás das Políticas de Censura da Steam Tem Aliados Poderosos — E Miraram em Jogos Populares Com Alegações Absurdas". O texto expunha como o Collective Shout, uma organização feminista australiana, havia orquestrado a remoção de dezenas de games da plataforma da Valve.
A jornalista conectou os pontos entre esse grupo e outras organizações como o National Center on Sexual Exploitation (NCOSE) e o Exodus Cry — todos unidos em uma cruzada contra qualquer conteúdo adulto que considerem "problemático". E aqui mora o perigo: quem decide o que é problemático?
Valens revelou como essas organizações fazem alegações muitas vezes infundadas contra games, acusando títulos como Detroit: Become Human de promover violência contra mulheres e crianças. O mais preocupante? Elas conseguem derrubar jogos sem nem precisar apresentar justificativas específicas — basta pressionar os processadores de pagamento com o discurso correto.
O que Valens descobriu sobre o Collective Shout vai muito além da censura de jogos. Essa organização já havia tentado banir Grand Theft Auto V das lojas australianas, alegando que o jogo incentivava violência contra mulheres. Também miraram em Detroit: Become Human, um jogo aclamado pela crítica que trata justamente de questões como abuso e direitos civis.
O padrão se repete: escolhem alvos populares, fazem alegações sensacionalistas e mobilizam uma rede de organizações aliadas para pressionar corporações. É uma máquina bem azeitada que sabe exatamente onde apertar para conseguir resultados.
E seus "aliados poderosos" revelam muito sobre a verdadeira natureza dessa cruzada. O NCOSE, por exemplo, já foi conhecido como Morality in Media — uma organização cristã conservadora que passou décadas atacando qualquer forma de expressão sexual. Mudaram o nome para parecer mais progressivos, mas mantiveram a mesma agenda repressiva de sempre.
O Exodus Cry combina retórica feminista com posições antiaborto e anti-LGBTQ+. É fascinante como conseguem vender censura conservadora embalada em linguagem progressista. Genial, se não fosse perigoso.
Uma das táticas mais eficazes desses grupos é o controle da linguagem. Observe como o Collective Shout se refere aos defensores dos jogos censurados: "fetichistas pedófilos gamers com cérebro podre de pornografia". Não é argumentação — é desumanização.
É a mesma estratégia usada em qualquer campanha de censura: transformar os oponentes em monstros morais para que seja impossível defendê-los publicamente. Quem vai arriscar ser rotulado de "defensor de pedófilos" por questionar a remoção de um jogo?
E funciona perfeitamente. Jornalistas, desenvolvedores e até mesmo executivos de empresas preferem ficar calados a enfrentar essa máquina de difamação.
O que aconteceu depois deveria servir de alerta para qualquer um que ainda acredita na liberdade de imprensa. Os donos da Vice ordenaram que Valens removesse o conteúdo relacionado ao Collective Shout, alegando que o material era "controverso demais". Quando ela se recusou, foi praticamente empurrada para fora da Waypoint, o braço gamer da publicação.
A coisa ficou ainda mais interessante quando Shaun Cichacki e Matt Vatankhah, dois outros escritores da Waypoint, renunciaram em solidariedade à colega. Não foi uma saída silenciosa — foi um protesto que expôs a natureza da censura que estava acontecendo.
"Eu mantenho todos os meus artigos retraídos, especialmente o sobre o Collective Shout", declarou Valens ao deixar a empresa. A mensagem era clara: não se tratava de erro jornalístico, mas de pressão externa para silenciar uma investigação inconveniente.
A ironia é gritante: uma empresa que já foi símbolo do jornalismo alternativo, disposto a incomodar os poderosos, agora silenciava suas próprias jornalistas por medo de controvérsia. A Vice, que um dia investigou cartéis de droga e ditaduras, agora tremia diante de um grupo de ativistas australianas.
E tem mais: a Vice declarou falência em fevereiro de 2024, demitiu a maioria de seus funcionários e foi relançada em maio sob nova direção. Uma empresa em crise financeira não pode se dar ao luxo de enfrentar campanhas de pressão — é mais fácil sacrificar uma jornalista.
O caso Valens revela algo muito mais profundo sobre como funcionam essas organizações "de defesa". O Collective Shout se descreve como uma cruzada contra a "objetificação das mulheres e sexualização de meninas". Nobre causa, certo? O problema é quando essa cruzada se transforma em ferramenta de controle ideológico.
Observe a seletividade dos alvos: games japoneses, visual novels, títulos independentes com estética anime. Curiosamente, nunca vemos essas organizações fazendo campanha contra o OnlyFans ou outras plataformas que literalmente mercantilizam a sexualidade feminina. Por quê? Porque aquilo é "empoderamento", enquanto um desenho de personagem fictícia é "exploração".
A hipocrisia é tão gritante que chega a ser cômica — se não fosse trágica. Estamos falando de grupos que destroem a subsistência de criadores independentes enquanto aplaudem a mercantilização real do corpo feminino. É o mundo de ponta-cabeça, onde a ficção é mais perigosa que a realidade.
O Collective Shout celebra cada "vitória" como se tivesse salvado crianças reais, quando, na verdade, só conseguiu censurar pixels organizados de forma artisticamente questionável. Enquanto isso, problemas reais de exploração sexual continuam sendo ignorados — porque são mais difíceis de resolver e geram menos likes no Twitter.
Valens acertou em cheio ao focar nos processadores de pagamento. Visa, Mastercard, PayPal — essas empresas se tornaram os verdadeiros censores da era digital. Não precisam de leis ou tribunais; basta cortar o financiamento e qualquer plataforma fica de joelhos.
É um poder assustador nas mãos de corporações privadas que nem sequer fingem ter compromisso com a liberdade de expressão. Elas simplesmente cedem à pressão de grupos ativistas porque é mais barato do que enfrentar campanhas de boicote. E o mais genial do esquema é que, tecnicamente, não é censura governamental. É só o "livre mercado" funcionando, dizem os defensores.
Claro, chamam de "livre mercado", mas não há liberdade real quando poucas corporações concentram o controle do sistema financeiro digital. O problema não é o mercado — é o monopólio informal que permite silenciar empresas, projetos e pessoas sem qualquer debate público. E isso já foi usado contra sites de crowdfunding, veículos de mídia alternativa e até bancos ligados a setores vistos como "polêmicos".
Enquanto os ativistas celebram suas "vitórias" morais, desenvolvedores independentes veem suas vidas desmoronando. Pequenos estúdios que dependiam das vendas na Steam para sobreviver agora enfrentam a falência. Artistas que levaram anos criando seus jogos descobrem que todo o trabalho foi jogado fora por causa de uma palavra-chave problemática.
E não estamos falando apenas de "jogos pornográficos". Títulos completamente inocentes estão sendo atingidos por algoritmos de detecção automática que não conseguem distinguir contexto. Visual novels sobre relacionamentos amorosos são tratadas da mesma forma que conteúdo explícito.
O mais cruel? Muitos desses desenvolvedores são exatamente o tipo de pessoa que esses grupos alegam proteger: jovens, diversos, frequentemente LGBTQ+, criando arte que reflete suas próprias experiências. Mas, na cruzada moral, eles se tornaram danos colaterais aceitáveis.
Hoje são jogos adultos, mas o precedente está estabelecido. Se grupos de pressão podem forçar a remoção de conteúdo por meio dos processadores de pagamento, onde isso para? Animes com personagens de aparência jovem? Já estão na mira. Livros com cenas de sexo "inadequadas"? Alguns já foram atacados. Músicas com letras "ofensivas"? É questão de tempo.
A infraestrutura de censura está pronta; só falta encontrar os próximos alvos. E o mais assustador: isso está sendo vendido como progresso social. Cada ato de censura é embalado em linguagem de proteção e justiça, tornando mais difícil resistir sem parecer reacionário.
Enquanto a Steam se dobra aos caprichos de organizações ativistas, plataformas como a GOG e itch.io continuam oferecendo refúgio aos jogos censurados. É a prova de que sempre existe alternativa — para quem tem coragem de oferecê-la.
Desenvolvedores estão criando seus próprios canais de distribuição. Jornalistas independentes estão surgindo para cobrir histórias que a mídia corporativa não ousa tocar. A resistência tem cara, nome e preço. Ana Valens pagou com o emprego por fazer jornalismo de verdade. Outros desenvolvedores pagam com seus jogos removidos. Mas cada resistência planta uma semente que pode florescer em terreno mais fértil.
Estamos vivendo uma era de censura corporativa disfarçada de progresso social. E como toda censura, ela não para nos primeiros alvos. Mas também estamos vendo que sempre há quem se recuse a baixar a cabeça. Ana Valens perdeu o emprego, mas ganhou algo mais valioso: a certeza de que fez a coisa certa. E isso, nenhum processador de pagamento ou grupo ativista consegue tirar.
Como diria o velho ditado: a verdade pode custar caro, mas a mentira custa sempre mais. A Vice que o diga.
Enfim, podemos concluir que quando três ou quatro processadores de pagamento decidem o que pode ou não existir online, o "livre mercado" se torna uma farsa.
O problema não é o capitalismo — é a falta de concorrência real.
Quando poucas empresas concentram o poder de transação digital, a liberdade de expressão vira um luxo, não um direito. O que vemos hoje é um monopólio informal em que grupos ativistas conseguem impor censura moral sem passar por nenhum debate público.
O antídoto?
Mais descentralização, mais concorrência, mais liberdade para criar alternativas.
O surgimento de plataformas como GOG, itch.io, ferramentas de crowdfunding independentes e veículos jornalísticos autônomos mostra que ainda há esperança — desde que haja coragem para resistir e inovar.
A liberdade de expressão não deve depender do humor de uma empresa ou da pressão de militantes. Ela deve ser defendida como princípio inegociável — mesmo (ou principalmente) quando incomoda.
A luta não é apenas contra a censura, mas contra a concentração de poder. Só com mercados verdadeiramente livres, com livre concorrência e diversidade de plataformas, é que poderemos garantir uma internet livre.

Referências:

https://www.notebookcheck.net/After-payment-processors-prompt-removal-of-Steam-games-journalists-investigating-the-censorship-resign.1063259.0.html
https://www.pcgamer.com/software/platforms/valve-confirms-credit-card-companies-pressured-it-to-delist-certain-adult-games-from-steam/
https://www.pcgamer.com/software/platforms/steam-introduces-new-rule-prohibiting-certain-kinds-of-adult-content-that-might-make-visa-or-mastercard-unhappy-financial-deplatforming-in-action/